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Estilo de Vida

Brasiliense ajuda refugiados e se declara cidadão do mundo

Guilherme, sem hesitar, respondeu com a firmeza de quem já sabia o caminho: “Essa é a minha vocação. Vou trabalhar em uma ONG, religiosa se possível, em algum lugar do mundo”

Agência UniCeub

09/06/2025 15h07

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Foto: Arquivo pessoal

Por Aline Miranda

Descalço sob a chuva, com os pulsos algemados e o coração em paz, Luís Guilherme encarava o rosto furioso do homem à sua frente. “Sai daqui! Você não foi feito para trabalhar em ONG! Esse curso não é nada comparado à realidade!”, vociferou o ator, durante uma simulação do seu mestrado na Costa Rica, em campo humanitário. 

Guilherme, sem hesitar, respondeu com a firmeza de quem já sabia o caminho: “Essa é a minha vocação. Vou trabalhar em uma ONG, religiosa se possível, em algum lugar do mundo.”


Raízes


Luís Guilherme nasceu em São Paulo. Cresceu na Asa Norte em Brasília, em meio à vizinhança tranquila, aos amigos da igreja e à rotina da escola Marista, ou, como ele brinca, “o maristinha, maristão”. 

“Acho que eu nasci com isso”, diz, referindo-se à vontade de ajudar o próximo, como quem fala de um dom espontâneo, quase inevitável. Desde pequeno, já se comovia com quem pedia ajuda na rua. Pedia dinheiro aos pais para poder doar.

“Eu me sentia muito tocado pelas pessoas; acho que a minha carreira começou aí, nesse desejo de servir”, arrisca. Em casa, a referência era viva: o pai, envolvido em pastorais e missas; a mãe, médica, estendendo plantões e ajudando pacientes com presentes e dinheiro. Da escola, da igreja e do exemplo familiar nasceu uma base sólida de fé e compaixão. E foi ali, ainda criança, que nasceu também o seu primeiro grande sonho: ser como Ronaldo Fenômeno.

Não exatamente pelo futebol. O encantamento vinha das ações promovidas pela ONU nos jogos “contra a fome”, em que o ídolo jogava para ajudar populações vulneráveis. Guilherme cresceu com o desejo de vestir a mesma camisa, não de atleta, mas de alguém que atua por justiça social.
 
Ele até tentou o caminho das chuteiras: jogou futebol profissional dos 20 aos 22 anos, até que uma lesão interrompeu a trajetória. Anos depois, já formado, com mestrado em mãos e experiência acumulada, o destino o levaria justamente para Genebra,na Suíça para trabalhar no Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o mesmo braço das Nações Unidas que promovia os jogos que o emocionavam na infância. “Olha como são as coisas”, disse , com um sorriso. “O que a gente almeja quando criança pode se realizar.”

Quem confirma essa vocação quase nata de Guilherme para o cuidado com o outro é Júnior, amigo de infância e irmão de caminhada:

“O Gui, eu diria que é o irmão que a vida me deu. A gente se escolheu como irmãos, na prática. E das muitas qualidades que ele tem, o carisma é algo natural, genuíno. Desde criança, ele carregava essa vontade de ajudar o próximo, é coisa dele, da essência. Sempre teve essa leveza no olhar, essa nobreza no pensamento.”


Travessias:


O primeiro intercâmbio que Guilherme realizou foi aos 17 anos, meio contrariado, levado pela insistência da mãe. Tímido, retraído, pouco acostumado a se afastar dela, embarcou para Ohio, nos Estados Unidos e caiu, sem aviso prévio, numa realidade bem diferente da esperada: uma casa sobre rodas. 

Literalmente. A família que o receberia, vivia em um trailer, com pouco conforto, pouca comida e água quente racionada. Foi um choque. Ele sentia frio, sentia fome, e no início, até quis voltar. Mas algo virou dentro dele. Decidiu enfrentar a solidão e os invernos gelados com coragem: cortou o cabelo, comprou roupas novas, falou com quem não conhecia.

 “Eu tenho que me virar”, pensou. Mais do que um intercâmbio, foi uma travessia interior, e ali nasceu, também, o interesse por Relações Internacionais. Morar fora, longe do conforto, o ensinou que era possível viver com menos e se realizar ajudando os outros.

Anos depois, já na faculdade, uma nova oportunidade cruzou seu caminho: A Costa Rica. Desta vez, a decisão foi dele. Diferente das escolhas convencionais como Canadá e Uruguai, que estavam entre os convênios disponíveis por sua faculdade, o Ceub, Luís optou por um caminho diferente da maioria, algo que já estava se acostumando a fazer, e preferiu a simplicidade da América Central.
 
Lá, viveu nove meses de descobertas: enquanto estava por lá, decidiu que não queria que universidade fosse a sua única fonte de ensino, e foi o primeiro universitário a ser aceito num curso da ONU voltado para mestrandos e doutorandos e, pela Corte Interamericana de Direitos humanos, onde fazia estágio, ele conheceu um orfanato. Lá, conheceu Luizito, um menino que o lembrava muito de si mesmo e que ele ou a visitar sempre. Dessa vez, não foi preciso ar fome nem frio para se entregar ao outro: ele já sabia o caminho.


Muito além do “escritóriozinho”


Foi também em 2012 que Guilherme se viu diante de uma das certezas mais profundas de sua trajetória. Queria dedicar a vida ao trabalho humanitário. No estágio que fez no Alto Comissariado da Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), conheceu de perto a lógica das organizações internacionais, e mesmo lidando apenas com planilhas, relatórios e ligações telefônicas, algo dentro dele acendeu. “Eu recebia ligações de imigrantes, e ficava muito tocado”, conta. 

Atuava como estagiário do assistente de programas e ajudava a direcionar recursos às ONGs parceiras, o que o aproximou de figuras marcantes, como a irmã Rosita, uma freira muito conhecida no Brasil e no mundo por seu trabalho com imigrantes e refugiados. Foi ali, entre os bastidores do auxílio e a ausência do contato direto com quem precisava de ajuda, que entendeu: queria estar em campo.
 “Quem queria trabalhar com ajuda humanitária aqui em Brasília era só um escritoriozinho”, desabafa. E ele queria era gente, era presença, era servir de perto. “Sou um cidadão do mundo”, repetia para si mesmo, certo de que, onde quer que fosse, seria guiado pela fé e pelo compromisso de servir a quem mais precisa.


De jipe pelo Quênia


Depois de concluir o mestrado na Universidade das Nações Unidas, Luís embarcou em mais uma travessia, dessa vez, em direção à África. Foi um convite que veio do coração e de Hillary, seu melhor amigo queniano. “Esse cara parece Jesus Cristo, ele é tão bom”, conta Guilherme, sorrindo com afeto. Hillary o chamou para fazer a pesquisa de campo da tese com ele, no Quênia.

Chegou a Nairóbi em meio a um susto: uma cidade com forte presença militar, marcada pelo medo constante de atentados terroristas, especialmente contra cristãos, maioria no país. “Até no shopping a gente precisava ar pela segurança e dizer o que ia fazer”, relembra. Para não ser confundido com um americano, que ali não eram bem vistos, ou a andar com camisa do Brasil, deixava a barba crescer e sorria muito. “Tem que gesticular. Americano é sério, Brasileiro sorri”, me contou.                                         

No campo, no interior árido do Quênia, o trabalho era intenso: viagens longas de jipe pelo deserto, dias comendo apenas pão de forma e salgadinhos, enfrentando sol escaldante e noites sem conforto. “Comia camelo, cabra, às vezes nada. Na volta pra capital era Pizza Hut, sorvete, descanso.” Era assim. A missão incluía a entrega de alimentos, roupas e medicamentos, a verdadeira vivência humanitária que ele tanto buscava.

E foi lá, nesse cenário árido e hostil, que um pequeno milagre cruzou seu caminho: Elias Dub. “Nas vilas, ninguém me abraçava, achavam que eu estava doente por ser muito branco. Saíam correndo. Só ele veio correndo, me abraçou. E não sabia que eu era brasileiro, mesmo chutando uma bola do Brasil.” Elias, com cerca de seis anos, havia perdido quase toda a família. Era o único que não teve medo. Guilherme se emocionou. “Esse moleque tem alguma coisa com Deus.”

Levou Elias para a capital, conversou com a mãe do menino, que, doente, deu sua bênção: “Leva ele, dá uma vida boa para ele”. Na cidade, Elias ou a viver com Luís, Hillary, a vice-diretora da ONG, Mônica, e a contadora. Virou a alegria da casa, como Guilherme gosta de lembrar. Ele o matriculou na melhor escola, ensinou inglês, espanhol, levou-o à missa. “Era o único negro da sala, só tinha filho de americano. Mas ele era felizão.” Até hoje, mantém contato por mensagens. “Ele lembra sempre de mim. Algum dia, vou trazer ele para Brasília.”

Foto : arquivo pessoal


Entre o supérfluo e o essencial

Foi na volta da África que Luís sentiu o primeiro baque. Ao chegar em casa, entrou no banheiro, sentou-se no vaso sanitário e ficou ali por alguns minutos, não por necessidade, mas por reflexão. “Caraca, que diferença”, pensou. Depois de meses visitando vilas onde sequer havia banheiros, aquele objeto comum, presente em muitas casas brasileiras, ganhou outro significado. Era símbolo do quanto a gente toma certas coisas como garantidas, até que elas faltem.

Pouco tempo depois, em Florianópolis (SC), viu garrafas de bebida de cinco mil reais sendo estouradas e jogadas no chão. “Um mês atrás, eu estava com crianças que não tinham água para beber. E aqui estavam jogando dinheiro fora.” Levantou, deixou a festa e percebeu que algo tinha mudado para sempre. A realidade que conheceu na África não cabia mais no mesmo mundo em que aparências valem mais que a empatia.

Silêncios, abrigos e caminhos

Durante a pandemia, Luís seguiu o instinto: foi para Roraima trabalhar como voluntário na fronteira com a Venezuela, onde milhares de refugiados buscavam recomeçar. Lá, conheceu de fato o trabalho do IMDH, o Instituto de Migrações e Direitos Humanos, e ou a ouvir com  mais frequência sobre a irmã Rosita, diretora da instituição. 
Quando seu pai ficou gravemente doente, Luís voltou a Brasília. O reencontro com a missão veio com a inauguração da Casa Bom Samaritano, um abrigo fundado por ela. Ele mandou o currículo, foi chamado e, desde então, não se desligou mais da causa.

“A habilidade do Luís foi essencial para que os acolhidos se sentissem parte do processo. Ele organizou as áreas com responsabilidade e ajudou a construir, junto com eles, um caminho de autonomia”, afirmou a irmã Rosita, da Congregação Scalabriniana, ao recordar da importância do papel que Luís desempenha na Casa Bom Samaritano.

Foto : arquivo pessoal

Hoje, Luís atua como agente externo do IMDH, cruzando o Distrito Federal para encontrar famílias imigrantes em situação de vulnerabilidade. Entrega doações, ajuda com documentação, leva crianças ao hospital. 

“Todo dia eu aprendo com eles”, diz. “A força de vontade, fé em Deus, a resiliência deles… é muito grande.” O contraste entre a realidade dessas famílias e os excessos que também existem no Brasil reforçou seu desejo de viver com o mínimo. 

“Eu não quero roupa de marca, não quero carrão. Quero o básico para viver e ajudar os outros.” O silêncio da sauna, seu refúgio diário, também virou hábito essencial. “Ali é onde eu rezo, medito, relaxo. Porque o ritmo do abrigo é muito frenético. Eu preciso desse momento pra cuidar da minha mente.”

Com os pais falecidos e uma irmã que vive com o marido na Asa Sul, Guilherme sente que Brasília deixou de ser um ponto fixo. “Sou só eu e Deus. E isso só reforça minha vontade de ir pelo mundo.” No mês que vem, parte para o Canadá. Talvez fique, talvez volte para a África, talvez siga para a Suíça. Ele não faz planos, faz caminhos.


Supervisão de Luiz Claúdio Ferreira

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